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sábado, 17 de junho de 2017

A FENOMENOLOGIA DO RENASCIMENTO - The phenomenology of rebirthing

Fenomenologia do Renascimento

Walmir Monteiro[1]


Resumo
            O que conduz este artigo é uma verificação daquilo que fundamenta os princípios gerais do rebirthing de Leonard Orr e uma análise teórica da descrição da execução dessa ferramenta terapêutica conhecida entre nós como “Renascimento” tal como foi introduzido no Brasil por Samvara Bodewig. A partir de uma completa descrição conceitual e prática do “Renascimento” verificamos a existência de dois pilares teóricos que lhes concedem formal sustentação teórica e prática. Trata-se da “Fenomenologia” de Edmund Husserl e Merleau-Ponty e do conceito de integração tal como nos ensina a “Gestalt-terapia”. Parece-nos, então, que o “Renascimento”, prática há muito tida como alternativa, na verdade apresenta uma fundamentação, além da simples fisiologia da respiração, quando finca fortemente suas raízes em conceitos fenomenológicos.

Abstract

            What drives this article is an examination of what underlies the principles of "rebirthing" of Leonard Orr and analytical description of the implementation of this therapeutic tool known to us as "Rebirthing" as introduced in Brazil by Samvara Bodewig. From a complete description of the conceptual and practical of Rebirthing verify the existence of two theoretical pillars that grant them formal theoretical and practical support. This is the "Phenomenology" of Edmund Husserl and Merleau-Ponty and the concept of integration as it teaches us to Gestalt therapy. It seems, then, that the Rebirthing, a practice long regarded as an alternative actually has a scientific basis beyond the simple physiology of breathing, when finca strongly rooted in phenomenological concepts.

Objetivo         
            O objetivo deste artigo foi o de analisar as fundamentações do Renascimento, uma técnica de respiração circular e consciente. Circular porque obedece a ciclos de inspiração e expiração. E consciente porque durante todo o tempo o próprio cliente comanda sua própria respiração. Esse processo não objetiva a regressão e alcançar lembranças, memórias ou reflexões acerca de conteúdos mentais. O processo, durante todo o tempo de uma sessão é focado somente na respiração, para que a pessoa experimente novas sensações, emoções e experiências ao soltar todas as tensões da inspiração, permitindo uma expiração relaxada dentro da proposta de uma respiração ampla, consciente e conectada com toda e qualquer sensação física ou mental que deve ser integrada durante o processo.
            O exercício não é indutor e nem se propõe à resolução de coisa alguma, apenas se respira e se permite entrar em contato com aquilo que está presente, tendo como objetivo a integração, já que o organismo é mobilizado em sua necessidade de reorganização para que tudo se acomode em nosso corpo e mente, permitindo certo realinhamento, reorganização, fruto da integração proporcionada pela respiração que nos faz apenas entrar em contato com uma série de coisas que na verdade se modificam sozinhas quando acolho tudo o que sinto em mim, tudo o que sinto na minha respiração.
            Todas as coisas do mundo que me cerca constituem perceptualmente um cogito pré-reflexivo, mas, fora dos moldes cartesianos, Merleau-Ponty afirma que o que descubro e reconheço pelo Cogito “é o movimento profundo de transcendência que é meu próprio ser, o contato simultâneo com meu ser e com o ser do mundo”.[2]. Segundo Merleau-Ponty as percepções somente se tornam possíveis se habitadas por um espírito capaz de reconhecer, de identificar e de manter diante de nós o seu objeto intencional. A coisa vista é em si mesma aquilo que dela penso:
            “Quando estou seguro de ter sentido, a certeza de uma coisa exterior está envolvida na própria maneira pela qual a sensação se articula e se desenvolve diante de mim: trata-se de uma dor da perna, ou é uma sensação de vermelho e, por exemplo, do vermelho opaco em um único plano ou, ao contrário, de uma atmosfera avermelhada. A interpretação que dou de minhas sensações deve ser motivada, e ela só pode sê-lo pela própria estrutura dessas sensações”[3]
            Ver, sentir e interpretar (as coisas exteriores) são ocorrências possíveis e necessárias quando não interferimos, mas apenas permitimos que ocorram e se integrem à nossa compreensão. Esta não interferência se propõe a possibilitar que haja um reconhecimento da coisa a partir do contato efetivo que ela desperta em mim.  O nível reflexivo em que isto se dá, dentro das considerações fenomenológico-existenciais sartrianas, equivale a uma redução fenomenológica, um “colocar entre parênteses, e recusar o que Husserl denomina mit-machen”[4]
            A proposta da técnica do Renascimento é que este “desenvolvimento” se dá via intergração e não produto de algum mentalismo, ou de nossas considerações de consciência. E nisto reafirmamos que respirar profundamente é um modo de suspender a minha ansiedade de interferência e julgamento de bom ou ruim, de bem ou mal, em relação a todas as coisas.
            Durante o exercício, a respiração é prioritária em relação a qualquer outra sensação ou manifestação, já que tudo que ocorre faz parte do processo de integração e por isso não devemos interferir. É desse modo que procuramos (o quanto possível) não interferir e priorizamos a respiração para a ativação (inicial) e a integração (conclusiva).
            O Renascimento e sua técnica de respiração não visam “deixar a pessoa bem”, mas possibilitar a autopercepção corporal que produz a integração. E é a integração que torna as coisas claras para o observador e o prepara para uma condição relaxada, fluida, que acaba por tornar a vida mais leve. Se formos pensar na relação que pode haver entre a respiração consciente e a solução dos nossos problemas poderíamos dizer que o Renascimento (embora não se proponha diretamente) ele trata a tensão do problema, mas não o problema em si.
            Jim Leonard aperfeiçoou um aspecto central no Renascimento ao valorizar mais a integração e menos a liberação, já que o Renascimento começou como uma técnica (catártica) de liberação e nas mãos de Jim evoluiu para deixar de ser uma catarse e se tornar mais meditativo e menos psicológico. O pensamento de Jim Leonard é que liberar significa “se livrar”, mas a melhor proposta do Renascimento, segundo ele, iria na direção do “entrar em contato e acolher as sensações”, aconteça o que acontecer, tornando consciente toda sensação desejada ou indesejada, agradável ou desagradável.

Atenção ao fenômeno: atitude serena.
            No Renascimento o papel do Renascedor, ou do terapeuta, é o de tão-somente observar o processo de respiração circular. A riqueza do movimento de inspiração em seu máximo e confortável alcance e o relaxamento que deve acompanhar a expiração, observando se ambas se compatibilizam e se sincronizam, especialmente no que se refere às suas elasticidades, intensidades e tamanhos, é uma atuação técnica importante. Mas, simplesmente, observar atentamente ao fenômeno, acompanhando todo o decorrer do processo da sessão,  é, na verdade, a principal função do Renascedor.
            O cliente, por sua vez, é instruído a permitir que suas sensações se integrem a partir dos efeitos proporcionados pela respiração circular. E isto ocorre quando não interferimos, mas permitimos que o fenômeno continue ocorrendo tal como surge, tal como se move, tal como é. E que ele se transforme por si mesmo, no seu próprio modo, do seu próprio jeito.
            A Fenomenologia se dedica a descrever o fenômeno tal como ele ocorre em si mesmo. Segundo a etimologia, a Fenomenologia é o estudo ou a ciência do fenômeno. Somos tomados, fisicamente, o tempo todo, por uma série de fenômenos. Desde uma brisa suave que nos toca o rosto, até um fio de cabelo que incomoda os olhos, passando por uma garganta que arde, um lábio que seca ou alguns dedos que estremecem. Tudo é fenômeno.
            Também são fenômenos as coisas que acontecem fora de mim. Tudo o que vejo, tudo o que penso, tudo a que assisto. Quando nos habituamos a nos relacionar com os fenômenos de maneira simples, direta, clara e sem grande pretensões explicativas e curativas, acabamos nos aproximando de nós mesmos e da natureza que impera em nós.
            É desse modo que vemos há alguns séculos a ciência se dividir entre “os que querem observar para ver” e “os que querem explicar para resolver”. Sinteticamente, e nos reportando a Dilthey, dizemos que as ciências positivistas (naturais) buscam explicar o objeto (ou fenômeno), enquanto as ciências fenomenológicas (humanas) buscam compreender o objeto (ou fenômeno).
            E é essa atitude positivista que tanto permeia a nossa cultura que nos leva à mania de julgamentos e a buscas às vezes obsessivas de explicações. Insistimos em saber o porquê de tudo, como se tudo tivesse, obrigatoriamente, que fazer um sentido (cartesiano) e assim ser explicado.
            O positivismo foi uma corrente sociológica criada pelo francês Auguste Comte (1789-1857) que surgiu como desenvolvimento do iluminismo, caracterizando-se como uma afirmação das ciências experimentais, e propondo à experiência humana valores completamente materiais. Trata-se de uma corrente de pensamento que influenciou completamente a nossa civilização. O nosso modo comum de pensar é um modo positivista, porquanto é o meio de raciocínio a que estamos habituados, especialmente no Ocidente. Assim o empirismo científico (neopositivismo) que passou a dominar como método científico, influenciou a todos os sistemas organizacionais e às pesquisas, tendo a prerrogativa de conferir status de verdade a qualquer saber que fosse considerado científico, e somente seria científico o que também fosse positivista.
            Já a Fenomenologia olha o fenômeno tal como ele se apresenta, sem qualquer concepção apriorística do “como deveria ser”. É um método que se opõe ao determinismo positivista, propondo que o conhecimento se volte às coisas como fenômenos em si mesmas, valorizando assim a compreensão, não a explicação ou a interpretação.
            Está presente, então, no Renascimento, a proposta da Fenomenologia de observar o fenômeno sem apressar-se em defini-lo ou determiná-lo, como nas palavras de Heidegger, a proposta é adotar uma “atitude serena” diante de todas as coisas, demorando-se a julgar, a concluir, a responder. E essa “serenidade heideggeriana” vem a corresponder com a “redução fenomenológica” husserliana que propõe a aproximação do sujeito ao fenômeno, buscando compreendê-lo e não explicá-lo. 
            No compreender não ocorre uma distinção clara entre sujeito e objeto (pessoa e fenômeno), já que o sujeito do conhecimento toma a si mesmo como seu objeto de conhecimento. Para Ricoeur, compreender é mais que um modo de conhecer, é um modo de ser.
Facilitando o desenvolvimento humano pela integração
            Fritz Perls disse que o critério de um tratamento bem sucedido é atingir o grau de integração que facilite o próprio desenvolvimento. Perls faz diferença entre o que chama de “personalidade espontânea” e “personalidade deliberada”. A personalidade espontânea é formada a partir do respeito aos processos naturais de desenvolvimento, algo que diz respeito, por exemplo, aos ensinamentos do parto humanizado de Leboyer. Desde o nascimento se pode praticar a espontaneidade, mas toda a parafernália hospitalar cheia de luzes, barulhos e procedimentos tão invasivos quanto artificiais impõem uma cultura da “deliberação” em detrimento à cultura da “espontaneidade” de que trata Perls.
            Perls, portanto, fala de integração. A gestalt busca integrar, a psicanálise busca analisar. E a diferença é que a integração faz com que as nossas experiências estejam próximas a nós, tão próximas que nos unificamos com elas. A integração que é o simplesmente nada fazer, mas tudo sentir é um processo singelo, quase banal, mas tremendamente importante. A facilidade da integração se explica porque o homem é parte da natureza, ele é um evento biológico, e ele é um todo, não pode ser partido. Integração, segundo Perls, requer identificação com todas as funções vitais: “toda tentativa de integração está sujeita a trazer para o primeiro plano algum tipo de resistência.”
            Barry Stevens diz que começamos a integrar com eficácia quando aprendemos não somente a relaxar, mas a não controlar o nosso corpo para que possamos compreender o seu modo natural de funcionar e o quanto e como eu interfiro com ele. Ela relata parte de uma sessão assim:
            “Pedi à pessoa que se deitasse de costas no chão e que levantasse os joelhos até que as plantas dos pés estivessem inteiras no chão. Pedi então que se ajeitasse um pouco para ficar o mais confortável possível. Disse que esta era apenas uma posição inicial que parecia funcionar melhor e que a pessoa não precisava se apegar a ela. Na verdade disse que ela não deveria se apegar a coisa alguma naquele momento. Ele fez isso e disse, procurando uma almofada: “Quero uma almofada debaixo da minha cabeça. A minha cabeça dói no lugar que encosta no chão”.
            “Uma almofada, está bem”, disse eu, “mas eu gostaria que antes você tentasse sem ela. Entre em contato com a dor na sua cabeça, por dentro, delicadamente – como se estivesse travando conhecimento com ela. Fique em contato como se fosse um foco de luz que não tira nada do lugar e não mantém nada do jeito que é. ‘Ficar em contato’ significa estar tão leve, que se alguma outra coisa no seu corpo chamar – qualquer tipo de dor, tensão ou desconforto – você pode se mover em direção a ela tão facilmente quanto mover seus olhos da janela para a porta.             Deixe a dor estar. Se ela ficar mais intensa ou menos intensa, deixe que isso aconteça – ou qualquer outra mudança. Deixe ser aquilo que é”. Barry Stevens diz que estamos controlando nossos corpos o tempo todo, e que isto é simplesmente descontrolar – deixar o corpo fazer aquilo que ele quer fazer, já que o meu corpo sabe melhor do que eu o que é melhor para ele, e o simples entrar em contato com sensações corporais desagradáveis já as diminui ou elimina. Uma batida rápida do coração se reduz ao ritmo normal. Uma dor de cabeça desaparece – às vezes depressa, às vezes mais devagar. Dores na parte inferior das costas, onde elas pressionam contra o solo, podem regredir e parecem ir a algum outro lugar.
            A integração na gestalt busca tornar presente todas as sensações físicas e não-físicas, sem a preocupação de separar o que é físico do que é mental, já que num raciocínio organísmico somos uma unidade, um conjunto. Mas para fins didáticos dizemos que tanto uma dor que subitamente surge no pé ou na mão, ou o medo do escuro ou de cobrir o rosto são fenômenos a serem integrados. E a orientação é sempre a mesma: “não evite o que te incomoda, integre”. Ao menos se deve tentar a não-evitação, já que a prova da integração é a não-rejeição, a não-resistência, e sim a aceitação. Não tentar eliminar coisas e pessoas que nos incomodam já é o início da integração, e nesse momento já experimentamos alívio. Posso descobrir que não preciso sofrer com o que não me é agradável, porque posso deixar o desagradável existir e o agradável me tomar.

Considerações fenomenológicas sobre os cinco elementos do renascimento
                Primeiro Elemento: Respiração Circular - Significa que o ar entra e sai pela mesma via (boca ou nariz, e que a respiração acontece sem solavancos, sem pausas - mal termina uma fase (inspiração ou expiração), já começa a outra e elas têm a mesma duração. Ênfase na inspiração e no relaxamento da expiração. Esta orientação, que se constitui no que há de mais fundamental no Renascimento, se dá na disciplina do exercício que permite a ativação para a ultrapassagem de barreiras de urgência – que são dificuldades que podem surgir no desempenho da respiração circular – e o consequente alcance da integração. Aqui é fundamental a postura de atenção ao fenômeno sem produzir pensamentos, julgamentos e tentativas de controle ou qualificação daquilo que se experiencia.
                Segundo Elemento: Relaxamento total - Significa que não há qualquer controle sobre a expiração, aproveitando cada uma delas para permitir que o corpo e a mente se entreguem e se soltem mais e mais profundamente. A expiração relaxada relaciona-se ao “deixar estar”, à entrega total à vivência experienciada no aqui e agora, e também – principalmente - à atitude de aproveitar (ao máximo) com prazer tudo que se deseja desfrutar naquele momento, já que a expiração também pode simbolizar o modo como aproveito a vida, da mesma forma como a inspiração pode significar o modo como busco aquilo que desejo.
                 Terceiro Elemento: Consciência Detalhada - Significa estar presente e percebendo cada sensação do corpo, emoção surgindo, sentimento, imagem, pensamento, som e diálogo interno. Este elemento diz respeito à capacidade que desenvolvo de me desligar de tudo que signifique “ausência” para que eu desfrute de unidade entre mim e a experiência presente.
                  Quarto Elemento: Integração ao Êxtase - Significa não lutar contra nada, mas permitir que tudo se expresse na pessoa - apenas dando as boas vindas a tudo o que acontece da forma como acontece. Este elemento sintetiza bem a expressão “redução fenomenológica” que segundo Edmund Husserl é olhar o fenômeno tal como ele é, buscando compreendê-lo, extraindo dele percepções e sensações não contaminadas por nossos conceitos, preconceitos, experiências pregressas e opiniões pessoais.
                  Quinto Elemento: Faça o que fizer, sempre funciona - Significa que não há uma respiração errada - mesmo que se faça uma respiração bem diferente da do renascimento, pouco eficiente em termos de integração, ainda assim algo irá se integrar. É um elemento que gera relaxamento, pois é necessária uma certa prática para se estar atento a todos os quatro primeiros elementos. E este quinto nos remete à consciência de que toda experiência é válida, é útil, pelo menos como ponto de partida de muitas outras experiências e aprendizagens.

Considerações finais
                        O Renascimento é uma ferramenta preciosa que nos ajuda a pôr em prática diversos fundamentos da Fenomenologia e da Gestalt-terapia, partindo da respiração, nossa mais primária função, a primeira ação do bebê ao nascer, o vínculo do ser humano com o universo.
                        O Renascimento mobiliza de forma poderosa energias às vezes inócuas, às vezes latentes, às vezes confusas, às vezes doentias, contidas ou improdutivas, que se tornam luzes acesas pela circulação da vitalidade gerada por esse respirar que ativa e integra.
                       A respiração é o “elo mágico” entre o corpo, a mente e o observador, assim como o sangue que circula entre os órgãos do corpo permitindo-lhes vitalidade. A respiração, portanto, revitaliza esse conjunto e possibilita a integração do ser com tudo que lhe seja componente.
                       O Renascimento também nos torna mais atentos aos fenômenos vitais sem que isto seja um sacrifício, pelo contrário, torna-se um prazer muitas vezes rotineiro essa capacidade de viver o aqui e agora gestáltico, integrando as sensações, deixando de evitar as experiências e possibilitando que essa prática nos torne muito mais eficazes na arte de viver.

Referências
CHACEL, Khalis e LIMA, Tárika (Orgs). Formação em Renascimento. IRSP: SP, 2008.
DARTIGUES, André. O que é fenomenologia. Centauro: São Paulo, 2005.
LEBOYER, Fréderick. Nascer sorrindo. Brasiliense: RJ, 2000.
LEONARD, Jim. Rebirthing. Trinity, NY, 1993.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Perceção. Martins Fontes: São Paulo, 1999.
MONTEIRO, Walmir. Psicoterapia Existencial. Bookess: São Paulo, 2009.
MONTEIRO, Walmir. Fenomenologia e Humanismo. Bookess: São Paulo, 2010
ORR, Leonard. Renascimento na nova era. Gente: SP, 2000.
PERLS, Fritz. Isto é gestalt. Summus: São Paulo, 1977.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Vozes: Petrópolis, 1997.
STEVENS, Barry. Não apresse o rio. Summus, São Paulo, 1979.
STEVENS, John. Tornar-se presente. Summus: São Paulo, 1988.



[1] monteiro.walmir@gmail.com
[2] Merleau-Ponty. Fenomenologia da percepção. P.504
[3] Opus Cit. P. 502
[4] Mit-machen, em alemão, “fazer com, colaborar”, Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. P. 123 (5ª ed.).

EXISTENCIALISMO CRISTÃO

Existencialismo Cristão            
Walmir dos Santos Monteiro (USS)
 Martha de Souza e Silva Santos (USS)
Natalia Domes Gonçalves (USS) 

Apesar de ser tratado muitas vezes na literatura como uma filosofia materialista, bastante pessimista e atéia, o existencialismo possui teóricos que formam uma corrente existencialista cristã, como Kierkegaard, Unamuno, Tillich e Marcel, entre outros. É importante conhecer e divulgar o existencialismo cristão. Soren Kierkegaard (1813-1855) argumentou que o maior paradoxo do universo é a união transcendente entre Deus e o homem, que supera todas as normas morais e sociais. As escolhas independentes que uma pessoa faz constitui a sua existência. Cada pessoa sofre a angústia da indecisão até que dê um "salto de fé", e comprometa-se com uma escolha particular, que é confrontada com a responsabilidade de saber sua própria vontade, e com o fato de que devemos assumir nossas próprias escolhas para que vivamos autenticamente. A obra de Miguel de Unamuno (1884-1936) revela a influência da teologia protestante e a preocupação com os problemas do indivíduo enquanto ser limitado. Reflete que as limitações provocam a frustração do eu em sua ânsia de ser tudo sem deixar de ser ele mesmo. Para Paul Tillich (1886-1965) a Teologia é existencial (existência real), pois indaga o sentido do ser e seu fundamento supremo: indaga sobre Deus. Existir implica a “coragem de ser”, na qual o homem se afirma, a despeito de todo impedimento e reconhece que impedimentos fazem parte do ser, mas o ato de coragem, que é mais essencial, prevalece sobre o que é menos essencial. A coragem de ser nos impulsiona para além dos obstáculos que a existência nos coloca.  E é assim que enfrentamos o vazio, o nada, o não-ser. Em Karl Jaspers (1883-1969) compreendemos que Deus está “além do domínio da ciência e do domínio da existência”, manifestando-se a nós principalmente através das “situações-limites” que nos levam a encontrar soluções além dos limites existenciais. Há situações onde nossa finitude nos impede de “andar” e começamos a trilhar em um terreno transcendente, além da existência. Para tocá-lo precisamos de fé, pois somente assim conseguimos sair do mundano, da existência limitada. Gabriel Marcel (1889-1973) toma situações concretas como as relações entre mim e outro, a representação de uma cena passada ou de uma cena à distancia, a esperança, fazendo uma análise fenomenológica aprofundada. Considerou o Ter não como exterior ao Ser, mas como constituinte de uma maneira de existir. Assim, a sublimação do Ter em Ser é possível modificando-se a maneira de existir. A tese fundamental do pensamento de Marcel consiste na ideia de que existir é ter em conta o mistério, o transcendente.

Palavras-chave:

existencialismo cristão; filosofia existencial, cristianismo. 

SOLIDÃO EXISTENCIAL

Walmir Monteiro
 A solidão, no entendimento existencial, é um tema paradoxal. O homem é um ser-no-mundo, mas um ser solitário; vive em permanente relação com o mundo, mas o seu mundo é ele quem faz. O mundo não irá socorrê-lo existencialmente, nem irá determiná-lo em qualquer instância ou aspecto. O mundo dilui-se no âmago do ser, sendo a todo instante reconstruído nas circunstâncias das escolhas, ações e reações do próprio indivíduo.
No romance “Antes Só” o protagonista sai de casa para curar sua solidão e encontra na rua pessoas que ele julga felizes, mas ele continua só. Esse homem amargura-se e mergulha em autocomiseração, sentindo pena de si mesmo, mas não age no sentido de buscar as pessoas, falar com elas, construir vínculos e relações; possivelmente espera que cheguem até ele para tirá-lo da solidão, muito embora nada garanta que o relacionamento com muitas pessoas torne alguém mais feliz e livre dessa solidão ontológica, inseparável da condição humana. 
A representação de felicidade é estar rodeado de muitas pessoas, ter com quem sair..., mas tudo isto está no plano do “fenômeno do ser”, o solitário vê as pessoas e a julga felizes, mas ele não as acompanhou em momentos anteriores, não as conhece em suas realidades particulares e pessoais. E o fato é que quase nunca as pessoas são exatamente o que achamos que são.
Esta análise aponta a realidade dessa solidão imanente. Apesar de ser verdade que jamais nos desprenderemos da nossa solidão, nem por isso devemos nos afundar nela. 
A solidão é nossa companheira, mas não precisa ser a tônica da nossa vida.
A plena vivência de relações, nos permite oportunidades de comunicação e compartilhamento, mas esse compartilhar é formado inclusive de trocas solitárias com quem queremos bem e a quem escolhemos como parceiros existenciais.

Ser-com é isso: ter com quem dividir angústias e prazeres, tristezas e alegrias. 
E assim nossa solidão dilui-se no processo de vinculação e abertura ao outro e ao mundo. Sem defesas excessivas, sem autocomiseração e sem a ilusão de que a vida tenha qualquer obrigação de fazer-nos felizes. A solidão compartilhada não pode ser uma afecção de dor, já que é apenas uma partícula de um sem-número de sentimentos e emoções que vão e vem, nesse percurso existencial.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO EXISTENCIAL

A atuação do terapeuta na clínica existencial é afetada por um olhar fenomenológico, assim como o seu olhar, a interação de quem não se coloca como detentor de saberes e respostas e nem tampouco como interpretadores de situações, fatos e demandas. A presença fenomenológica é desinteressada (no sentido de espontânea), gratuita, real, evitando uma presença técnica se isto quer dizer ser detentor de técnicas que visam resolver questões a partir de pressupostos teóricos, científicos ou mesmo do senso comum. O olhar fenomenológico é atento, não se volta ao evidente, mas à riqueza do que vê. Riqueza no sentido da particularidade, da singularidade do objeto.
Quando olhamos, ou escutamos, libertos de pressuposições e projeções (noésicas) de consciência, quando olhamos ou escutamos abertos ao detalhamento da singularidade do fenômeno, prontos a sermos surpreendidos e desejando mesmo a surpresa, o detalhe, a novidade, o contraditório... estamos olhando fenomenologicamente. Na terapia existencial não descuidamos da realidade comum ou científica. Não descuidamos da demanda, do sofrimento, da necessidade estabelecida, não descuidamos do diagnóstico, nem dos cuidados que surgem.
É que além de tudo isso estamos especialmente voltados à problematização de tudo isso, entendendo que há um para além da demanda, do comum, do diagnóstico, porque simplesmente há uma vida, uma pessoa, uma subjetividade que é mais importante que qualquer norma. Dar voz ao que vem na contramão do óbvio, é nosso papel.
Sobretudo porque sabemos que as pessoas são indeterminadas, e a realidade é feita a cada dia, a cada momento, a cada movimento, a cada escolha ou desescolha. E sabemos que o homem se encontra (a si mesmo) no mundo, é um ser-no-mundo, e que cada passo constitui um pedacinho a mais do ser. Como disse Sartre: “Não é dentro de nós que nos encontramos, não é em nenhum refúgio que nos descobriremos. É na rua, homem entre os homens, entre as coisas, no mundo”.
Quando falamos em redução fenomenológica estamos dizendo como Husserl que os conhecimentos aprioristicos e as concepções cientificas ou comuns são colocadas entre parênteses, de lado, e isto não significa descarte, mas o cuidado de permitir que o fenômeno se revele por ele mesmo, como ele mesmo, sem pressuposições que o determinem.
Outro dia li na internet um trecho que dizia: “Há um casamento que ainda não foi feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular nasce da experiência sofrida, dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem, seremos invencíveis.”
Quando penso na fenomenologia-existencial não consigo ver essa separação entre saber popular e saber acadêmico que o texto alude, já que o foco da fenomenologia é a própria vida vivida, o mundo vivido, o lebenswelt. Ou seja: o que importa é o que se vive, o fenômeno-experiência tal como ele acontece. É nessa direção que se olha. Um olhar fenomenológico despe-se de pressuposições noésicas, de idéias anteriores sobre as coisas. As coisas são como se apresentam a nós, numa perspectiva fenomenológica em que a essência é a própria aparência. 
A aparição do fenômeno é o que importa, e ele de nós se aproxima como fenômeno do ser, aquilo que imediatamente toma conta dos nossos olhos, dos nossos ouvidos, da nossa percepção imediata. É esta aparição que introduz o fenômeno à experiência que com ele começamos a vivenciar. E o ser do fenômeno resultará da série de aparições que se revelarão no tempo, possibilitando a descoberta da essência desse fenômeno.
É dessa forma que compreendemos que a proposta da Fenomenologia é exatamente dissipar qualquer abismo interpretativo que a ciência ou o saber formal pretendam colocar entre a nossa consciência e o fenômeno que ocorre diante de nós. O que significa um adolescente que cuidadosamente mantém uma pequena cruz amarela pintada na testa? E uma mulher que raspa os cabelos e só usa roupa branca ou preta? O que significa também uma pessoa que convive em sua casa com doze cachorros e mais ninguém?
As pessoas se sentem tentadas a interpretar esses exemplos. Os psicólogos e psicanalistas se sentem quase que tendo a obrigação de explicar direitinho o que afinal acontece com essas pessoas e suas manias excêntricas. Tudo que é ex-cêntrico (ou seja que foge à norma, que sai do centro, do costumeiro) tende a ser tachado como anormal ou pelo menos digno de análise e elucidação.
Pois a Fenomenologia vai entender como lebenswelt a experiência de cada um, fora de concepções apriorísticas, fora de qualquer significado que seja fruto de nossas intuições científicas ou intelectuais. O que a Fenomenologia quer afirmar é que toda pessoa é um fenômeno, e isto quer dizer que ela é única, e sendo única não pode ser interpretada a partir de concepções a priori ou ideias gerais sobre o seu comportamento. A psicanálise e a psicologia falam muito de subjetividade, mas também tratam muito de concepções gerais que negam a subjetividade. São concepções seriais, apriorísticas sobre o homem. Fruto disso as interpretações que sempre aspiram encontrar unidades humanas ou unanimidades nosológicas, psicopatológicas.
Na fenomenologia-existencial vemos a subjetividade como o próprio ser fenomênico em ação. Uma ação livre que deflagra um modo de ser único, do outro e de mais ninguém.
Segundo Virginia Moreira, o processo psicoterapêutico se produz na interseção dos lebenswelt do terapeuta e do cliente. O psicoterapeuta "passeia de mãos dadas" com o cliente em seu mundo vivido, buscando sempre compreendê-lo, sem nunca separar-se de seu próprio lebenswelt. Como escrevi em outro lugar: cada qual em seu lado, mas sempre lado a lado.
(Walmir Monteiro)