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sábado, 8 de setembro de 2012

CRACOLÂNDIA: ABANDONO E DROGADICÇÃO



Por: Walmir dos Santos Monteiro
           
         - Vamos te levar para um lugar.
         - Mas eu quero esse lugar aqui.
         - Vai ser um lugar legal.
         - Você não achou aqui legal?

         Este breve e inicial diálogo entre uma Assistente social e uma menina, travado em plena “Cracolândia paulista”, me lembrou a história de Jean Genet, conforme contada e analisada por Sartre[1].
         “A Cracolândia é um lugar legal”. Dizia aquela menina de não mais que 11 anos. O nome Cracolândia lembra infância, liberdade e diversão. Como uma Disneylândia má e traiçoeira, Cracolândia nos lembra um veneno chamado crack. E toda droga, da mais leve até a mais pesada, sustenta o paradoxo do veneno doce, que te adoça enquanto te mata[2].
         A terra do Disney e a terra do crack sustentam curiosas semelhanças e diferenças. Ambas fomentam a ilusão. A Disneylândia diverte os abonados, a Cracolândia os abandonados. A Disneylândia é o sonho, a Cracolândia o pesadelo. Na Disneylândia se fala uma língua que nem todos entendem, na Cracolândia há uma linguagem incompreensível, surda, entorpecente, impiedosa.
         Se Jean Genet vivesse por aqui e em nossos tempos, certamente se afundaria na Cracolândia. Quem foi Genet? Um menino abandonado pela mãe ao nascer, que viveu perambulando pelas ruas de Paris até ser adotado aos 7 anos por um casal de camponeses, mas desde cedo Jean decidiu encarar o mundo de modo desafiante. Rompeu com os pais adotivos e saiu daquela casa que não lhe servia mais de parâmetro e orientação. Jean queria as ruas, queria o mundo, buscou a marginalização, um modo de ratificar e autenticar seu abandono, seu não pertencimento, optando por uma identidade destrutiva e afrontadora. É como se assumisse o seu nascimento como um gesto de recusa por parte da mãe, quando dela foi expulso no exato momento em que foi posto no mundo. Jean confrontou-se com a sociedade e naturalmente foi por ela repelido, uma rejeição social que teve seu nascedouro na recusa materna, tornando-o maldito desde o seu nascimento. Sartre teve por hipótese que Jean ao ser enviado para uma família no campo aprendeu o respeito absoluto à propriedade, assimilando que somente se pode ser herdeiro por meio de uma legitimidade que ele não possuía. Sentia-se, pois, inoportuno, excedente.
         A cracolândia é um espaço de propriedade e identidade, é como se a criança de rua pudesse finalmente assimilar algo como sendo seu. Um território demarcado como maldito, lugar dos malditos. E neste sentido há um resgate não da família, mas da familiaridade, e o crack se impõe como um veículo de fuga, de transcendência e de enfrentamento. A droga anestesia a trágica percepção da realidade de isolamento social que se impõe a uma personalidade em formação. Carente de bases e de instrução, carente principalmente de aceitação, o menino sofre a condição de solitário. O crack substitui o pai, a mãe, o afeto. E também o torna defensivo, agressivo, lutador em prol de si mesmo, ou do que resta de si mesmo.
         O homem é capaz de criações admiráveis, como o trem-bala japonês J. R. Magley que chega a romper impressionantes 580 quilômetros por hora; a construção de prédios como o Burj Dubai nos Emirados Árabes de inacreditáveis 512 metros de altura e 141 andares, projetar minúsculos aparelhos eletrônicos que são gigantescos em suas múltiplas capacidades; sem esquecer a surpreendente Medicina de alta complexidade que atinge feitos inimagináveis, além das conquistas da Biologia Molecular e outros exemplos que ilustram o incontestável poder humano em toda sua ousadia, inteligência e imaginação.
         Mas a contradição é que seremos capazes de decifrar toda a sequência do genoma humano, mas não de exterminar do mundo a fome, o desemprego e a corrupção. Ainda estamos longe da conquista de pequenas e essenciais coisas, como a capacidade de agir sempre com respeito, educação e cordialidade diante de nossos semelhantes, e também de nos livrarmos de uma série de vícios que nos escravizam.
         A humanidade hoje é muito mais conhecida por sua avidez por novidades do que por seu respeito aos valores humanos; é mais rapidamente identificada por sua voracidade ao consumo do que por qualquer preocupação com a preservação do meio-ambiente.
         É, pois, nesse cenário que vive o homem atual: numa sociedade de consumo que se dá a conhecer como “sociedade consumida”, já que (nela) tudo vira produto, e ela própria também se vê num processo autofágico, onde todos são a um tempo consumidores vorazes e produtos expostos ao consumo, na típica sociedade onde só possui valor aquilo que pode entrar para a categoria de produto.
         Assim, riquezas imateriais como respeito, ética, honestidade e solidariedade não alcançam valor de mercado, e então se tornam mercadologicamente inúteis.
         Ao lado disso, crescem os setores da sociedade que buscam inocular em nosso meio mais valores humanos e sociais. Tais setores são minoritários, pouco acatados na prática, embora obtenham respeito aos seus discursos. Tornou-se, assim, politicamente correto elogiar Institutos do Terceiro Setor, o Greenpeace, o WWF, e iniciativas similares como as relacionadas à reciclagem do lixo e cuidados com a água potável.
         Mas o debate sobre a toxicomania nos leva à percepção de que faltam organizações que lutem pela defesa “ecológica” do homem contra a poluição das drogas, por exemplo. Parece-nos um tanto contraditória a atitude de bradar contra a destruição das florestas, rios, peixes e flores e esquecer-se de incluir nessa lista o homem. Não faz o homem parte dessa linda natureza? Se não desejamos que sirvam lixo aos peixinhos porque também não protestar contra a ingestão de drogas? Não é também o homem um ser vivo merecedor de iguais cuidados?
         Nossas reflexões, por outro lado, nos levam a compreender a drogadicção como uma busca do ser, uma necessária passagem, um caminho indispensável (para alguns) ao encontro do ser, de seu próprio sentido de vida. Na teoria organísmica entendemos o sintoma como um modo de o sujeito buscar equilíbrio, e para a fenomenologia-existencial o sintoma não é algo a ser eliminado, mas analisado para que compreendamos a subjetividade de alguém que dele necessita para seguir em frente, para ser, para adquirir sentido e identidade.
         Sartre (1943/2000) ao propor reflexões sobre o corpo diz que o primeiro problema é que consideramos o corpo como uma coisa separada, dotada de leis próprias, e quando tento unir minha consciência ao meu corpo, o corpo que vem à minha consciência não é o meu, mas o dos outros, já que os órgãos que vejo são os dos outros. O meu corpo, tal como é para mim, não me aparece no meio do mundo, todavia, mesmo os meus membros externos são vistos como exteriores a mim. Quando toco minha perna, ou quando a vejo, estou presente a ela sem que ela seja eu. Assim, aquilo que faço existir é a coisa perna, e não a perna como possibilidade que sou de andar, de me mover, de correr. Em certo sentido é assim que o drogadicto faz: submete o seu corpo à droga como submeteria ao relento um objeto qualquer de sua propriedade, que ele não quisesse mais. É como se dissesse do alto de uma compreensão dualista cartesiana: este corpo não sou eu. É como se ele quisesse tornar possível separar-se do corpo, alienando-o, abandonando-o e por fim usando-o para resgatar-se na dimensão de um eu que não abarca a corporeidade.
         A ontologia fenomenológica apresenta o Em-si e o Para-si como seres que respectivamente pertencem ao mundo das coisas e ao mundo dos homens, sendo o Em-si a classe de seres providos de essência e desprovidos de consciência; já o Para-si é a classe de seres providos de consciência e desprovidos de essência já que a sua essência se faz e se refaz permanente e cotidianamente em cada uma de suas escolhas e atitudes. Uma das características existenciais do homem (Para-si) é que a angústia, seu fundamento, toma conta do seu ser, e isto se dá – entre outras coisas - porque ele tem consciência da sua finitude, do absurdo da existência, e que é o único responsável por suas escolhas e que são as suas escolhas que o tornam quem é.
         Diante da angústia surge uma tentação: entrar na condição em si e recusar a consciência, a liberdade, a responsabilidade, enfim, a minha existência. Ao entorpecer-me destruo minha capacidade de escolha responsável e elimino minha plena consciência. Perdendo a capacidade de decidir igualo-me ao ser Em-si. Mesmo por algumas horas, livro-me da angústia da minha existência e igualo-me às coisas, aos animais, aos vegetais. Isto é drogadicção.
         Este processo pode ser dar de modo gradual. Enquanto o sujeito consegue fazer um uso eventual, casual e recreativo da droga, ele é apenas um usuário. Mas pode chegar uma fase de plena perda do poder de decisão e aí o sujeito se vê claramente arrastado pela sua compulsão e se esquece das rédeas, perde o controle. Como um cavalo cujo montador descobre que as rédeas se soltaram de suas mãos e nada consegue fazer para resolver a situação. O animal corre cada vez mais velozmente e ele nada faz além de contemplar essa corrida louca, rumo ao abismo.
         A compulsão é um processo de escravização ao hábito. Conhecemos o que são hábitos, saudáveis e não saudáveis, mas o que caracteriza a compulsão não é exatamente a qualidade do hábito, mas a incapacidade de gerenciá-lo, de criticá-lo, de controlá-lo.
         Lavar as mãos é um hábito bem saudável, mas há pessoas escravas do “lavar as mãos”, elas são portadoras de um transtorno obsessivo-compulsivo que as obriga a lavar as mãos repetidas vezes, sob pena de sofrerem consequências graves, até mesmo trágicas, se interromperem esse ritual diário.
         O mesmo homem que exalta a primazia da liberdade e que é capaz de grandes feitos tecnológicos e científicos curva-se à droga e à bebida, e troca sua existência e liberdade por um pouco de pó ou por uma pedra de crack que o conduzem a um estado coisificado.
         Sabemos que o maior desafio social das comunidades é por qualidade de vida para todos. Desta forma, a liberdade de ser, de se expressar e de viver a vida com qualidade e dignidade, passou a ser primazia. E isto não é novo, surgiu com o Humanismo no século XIV. Muito antes disso, porém, o cristianismo já demonstrava o tanto de privilégios destinados ao homem, quantas possibilidades, mas também quantas responsabilidades.
         Nossos debates sobre o problema da toxicomania e suas consequências humanas e sociais circulam em torno de pontos sobejamente conhecidos, mas sem a necessária transcendência que nos faça agir com a eficácia e a urgência que o tema merece.
         Algumas questões sobre as drogas, seus usos e abusos são consensuais e bem conhecidas. Entre elas constam que:
  1. As drogas jamais acabarão.
  2. Depois de instalada a dependência é muito difícil a sua eliminação.
  3. Maconha e álcool são portas de entrada para drogas mais pesadas.
  4. Anfetaminas, remédios para emagrecimento, fazem mais mal do que bem.
  5. É preciso prevenir, porque a melhor saída para as drogas é jamais entrar.
Embora devamos combater o uso e o tráfico de drogas, sabemos de antemão que elas jamais acabarão. E para isso precisamos compreender que droga como aqui nos referimos é qualquer tipo de substância entorpecente, capaz de interferir no funcionamento do sistema nervoso e alterar a conduta.
Neste sentido, desde a cafeína até o rapé, passando pelo tabaco, pela taurina e pelos espumantes – tudo é droga. Contudo, a diferença se estabelece na quantidade e na capacidade de fazer uso de tais substâncias de um modo independente, isto é, sem se tornar adicto (escravo) delas.
Mas, como em uma roleta russa, não temos como saber de antemão quem desenvolverá dependência e quem conseguirá manter um uso sempre responsável dessas substâncias capazes de alterar o comportamento e desenvolver relações compulsivas.
Lidamos com índices de recuperação baixíssimos, exatamente porque se trata de uma patologia de prognóstico sombrio. E neste sentido são altas as taxas de óbito por overdose ou por doenças decorrentes de uma debilitação progressiva do organismo, isto sem falar, nas contaminações por HIV em função do uso de seringas contaminadas e a prática sexual sem proteção devido ao rebaixamento da censura e do cuidado preventivo que acompanham a drogadicção.
A maconha há muito tem sido considerada uma droga inofensiva, e de fato sabemos que ninguém morre por overdose de maconha. Contudo, além das pesquisas que mostram a responsabilidade dessa droga alucinógena na deflagração da psicose em pacientes predisponentes, e além da aliança que os estudos fazem entre maconha, adinamia, preguiça e falhas da memória recente, tem-se por certo que a maconha é porta de entrada para o uso de outras drogas, como a cocaína, por exemplo. Em nossa prática clínica, em um universo de cerca de 400 dependentes de cocaína, detectamos que 90% tinham começado pela maconha.
E em relação ao álcool, talvez um dos maiores problemas na redução do alcoolismo seja a grande simpatia que essa droga desfruta nos meios sociais. As pessoas se envergonham de fumar, mas não de beber. Posar segurando garrafas de cerveja ou abraçando uma torre de chope tornou-se algo glamoroso. Fica difícil fazer prevenção a uma droga tão letal quanto simpática.
Há um combate, em forma de campanhas, dirigido ao tabagismo que não se repete com o alcoolismo. Por alguma razão, o álcool é quase que “louvado” em nossa sociedade, sendo que governos e profissionais de saúde e educação deveriam enfatizar mais a necessidade de prevenção ao alcoolismo.
Pesquisas[3] dão conta da redução do tabagismo, revelando que o número de fumantes no Brasil está abaixo de 15% da população brasileira. A incidência de homens fumantes – ainda maioria – reduziu-se a uma taxa média de 0,6% ao ano. Em 1989, os brasileiros fumantes representavam 35% da população brasileira. Em 2012 são 14,8%. Porto Alegre é a capital com o maior número de fumantes no país, com 22,5% da população local. Na outra ponta da tabela está Maceió, com 7,8% dos habitantes. No Rio, os consumidores de cigarro são 14%.
A mesma pesquisa também mediu o consumo de álcool abusivo entre os brasileiros, e o índice se mantém inalterado desde 2006 com 17% da população. A incidência do consumo abusivo – quatro ou mais doses de álcool em um único evento nos últimos 30 dias – é maior entre os homens (26,2%), quase três vezes mais do em mulheres (9,1%).
Esta pesquisa comprova que quando se dá verdadeira atenção a qualquer problema de saúde que atinge a população, conseguindo unir toda a sociedade e influenciando a opinião pública, os resultados positivos são inevitáveis (caso do tabagismo), mas quando não se faz prevenção, e pelo contrário se fortalece a tendência de glamorização de determinada droga (caso do alcoolismo) o resultado é a estagnação mostrada pela pesquisa. E a propósito dessa dita estagnação, é preciso sinalizar que segundo esse levantamento, o uso denominado abusivo não diminuiu nem aumentou, mas, certamente, aumentou significativamente, em termos gerais, o consumo de bebida alcoólica no país nesse período pesquisado.
Uma das características comportamentais do homem pós-moderno é o desejo de soluções instantâneas. Parece que a tecnologia com suas fantásticas inovações e criações nos convenceu de que tudo pode ser resolvido em um instante, basta que se pague por isso. Neste sentido o desejo de emagrecer não tolera o esforço da reeducação alimentar e da disciplina da prática de exercícios. Por que tanto esforço se posso comprar uma caixa de anfetaminas e emagrecer rapidamente? Ilusão. É fato que emagrece, mas também é fato que destrói a saúde. Não se consegue manter a ingestão de tanta droga por tanto tempo e acaba-se engordando tudo de novo.
Fala-se muito em prevenção, mas faz-se pouca prevenção, ou quase nenhuma. Os discursos são politicamente corretos, mas a prática é a da omissão. A sensação que passa é que não se sabe fazer prevenção, no lugar disso surgem aqui e ali campanhas inócuas cuja base é propagar o clássico e ineficaz “diga não às drogas” em campanhas que em geral querem ensinar que drogar-se faz mal, mas isso todo mundo sabe. Necessário se faz que as bases da drogadicção sejam trabalhadas. São elas:
1.Uma legislação que limite a propaganda de bebidas alcoólicas da mesma forma que foi feito com o tabaco e deu certo, pelo menos constam expressivos números de redução do consumo de cigarros de tabaco;
2.Limites à prescrição de anfetaminas e a efetiva proibição da circulação em território nacional (Lei Federal) do fepronporex e anfepramona, entre outras substâncias nocivas já proibidas em diversos países. No Brasil uma medida eficaz seria defini-la como substância de uso exclusivo em hospitais apenas para tratamento de obesidade mórbida (quando o peso de uma pessoa ultrapassa o valor 40 no cálculo do IMC[4]). Isto significa que sua venda seria banida das farmácias, sendo a sua prescrição proibida em tratamentos ambulatoriais;
3. Ações governamentais para uma atenção especializada a moradores de rua, especialmente crianças e adolescentes envolvidos com o consumo de crack, inalantes e outras drogas. Uma das mais felizes iniciativas para o tratamento dessa questão são os “consultórios de rua” que surgiram no fim da década de 1990, em Salvador (BA), para atender a população em situação de risco e vulnerabilidade social, principalmente crianças e adolescentes usuários de álcool e outras drogas. Tal experiência tornou-se referência para novos projetos "Consultório na Rua" previstos no Plano “Crack, é possível vencer”, o qual consolida sua atuação para o encaminhamento de usuários que vivem nas áreas de maior risco social nos espaços urbanos. No “Consultório de Rua”, uma equipe formada por médicos, psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos, presta atendimento aos dependentes químicos diretamente na rua, com o suporte de um ambulatório móvel. A estratégia de abordagem é inspirada na ONG francesa “Médicos do Mundo”, que atende moradores de ruas e prostitutas em ônibus equipado como se fosse uma clínica. Após um mapeamento para descobrir onde estão concentrados os usuários de drogas, os profissionais fazem a chamada aproximação, intervenção com a população local, com uma equipe disposta a realizar um trabalho paciente, de aproximação, de estreitamento do vínculo, mostrando às pessoas que a equipe está lá para ouvi-las, orientá-las e cuidar delas no que for possível, mas que a população também tem a sua parte, o seu papel, nessa missão. Necessário se faz uma ação global e integral de amplo alcance social que vise a inclusão dessas pessoas, propiciando meios de escolarização, profissionalização e reinserção no mercado de trabalho. É claro que surgirão muitos resistentes a qualquer ajuda, e estes deverão ser alvo de um trabalho ainda maior para a consolidação da comunicação e do vínculo entre a equipe e o cidadão.
Por outro lado, é importante compreender que toda pessoa tem o direito de fazer suas escolhas e neste sentido a oferta de apoio médico e social pode ser recusada. Não cabe à equipe julgar o mérito dessa decisão que é privativa à pessoa.
No caso de crianças, adolescentes e outros incapazes é dever do estado defendê-los e promover ações que os beneficiem, mesmo que ainda não estejam em condições de total compreensão dessa necessidade.
Mas no caso dos adultos, as negociações levam em consideração se a pessoa quer ou não receber informações e orientações dos profissionais, lembrando que o foco do projeto não é que os usuários parem de usar drogas ou aceitem participar de um tratamento, mas que isso seja uma consequência do trabalho feito com eles na rua, uma vontade que deve partir do indivíduo e não da equipe profissional.
4.Programas sistemáticos em prevenção ao uso indevido de drogas criados por especialistas e voltados a crianças e adolescentes de 12 a 18 anos, aplicados nos colégios das redes pública e particular.
Fala-se pouco em prevenção e parece que o poder público somente age diante de certas situações quando elas se encontram em um estágio insustentável, tornando impossível a continuidade da omissão, sob pena de incontornável agravamento social e político da situação.
Em segundo lugar é necessário que se disponha de pessoal realmente qualificado para todas as ações desde a prevenção até o tratamento terapêutico, passando pelas abordagens realizadas pelos “consultórios de rua”. Observamos que na maioria das vezes em que se vão implementar ações em dependência química, o improviso e o amadorismo dão o tom. Precisamos ser mais profissionais.
Além disso, as famílias dos dependentes de crack e de outras drogas precisam ser alvo das nossas ações e atenções. De acordo com conclusões de uma pesquisa sobre o perfil dos usuários de crack no Abrigo de Paciência no Rio de Janeiro[5], a maioria dos usuários são homens entre 15 a 25 anos que além de apresentar um histórico familiar de moradia nas ruas, são pessoas que sofrem com a falta de estrutura familiar e estão à margem da sociedade.
As pesquisas revelam perfis de acordo com o local em que as mesmas são realizadas. A busca de conhecimento da realidade dos usuários em regiões de maior poder econômico revela que embora o crack seja a droga mais usada por moradores de rua, o seu uso não é mais restrito a redutos pobres e marginais: usa-se crack em todas as camadas sociais. Toda a sociedade, portanto, está envolvida nessa temática. Acabaram-se os guetos, ampliaram-se os grupos de risco, ninguém está a salvo.
Nossa esperança é que cresçamos enquanto cidadãos para uma nova compreensão dos temas aqui lançados, pondo de lado preconceitos, fundamentalismos e fantasias que impedem uma ação reflexiva, centrada; ao mesmo tempo lúcida, compreensiva e contundente, porque o problema avança, e ele é da nossa estrutura, da nossa conjuntura, da nossa subjetividade social.
O curioso paradoxo é que lutamos contra uma artificialidade e um mal que surgem da nossa natureza e do nosso bem, do nosso querer viver a aventura da vida, da nossa necessidade de encontrar sentido. Lutamos contra um mal que sabemos histórico, perene e imanente. Não lutamos contra substâncias e objetos, mas contra nós mesmos, contra a nossa incapacidade de identificação e conscientização do verdadeiro preço desse voo compulsivo em direção à destruição do ser que desejamos construir.


[1] “Saint Genet: ator e mártir”. Jean-Paul Sartre. Ed. Vozes
[2] Monteiro, W. Solitude. In: Crônica Existencial (2007)
[3] Ministério da Saúde (2012)
[4] Para fazer o cálculo do IMC basta dividir seu peso em quilos pela sua altura ao quadrado (em metros). O número que será gerado deve ser comparado aos valores da Tabela IMC, para se saber se você está abaixo, em seu peso ideal ou acima do peso.
[5] Jornal O Globo, 22/05/2012