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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Resenha de TEMAS EXISTENCIAIS EM PSICOTERAPIA

A DESCONSTRUÇÃO DA INDIFERENÇA, por Walmir Monteiro

ANGERAMI-CAMON. Valdemar Augusto. Temas Existenciais em Psicoterapia.
São Paulo: Pioneira Thomson, 2003.

É de se esperar que um livro sobre temas existenciais em psicoterapia traga à discussão assuntos como a doença, o doente, a construção da subjetividade e a depressão como processo vital. Mas quando essa mesma obra se propõe a tratar, com igual densidade, matérias polêmicas como fé e espiritualidade, concluímos que se trata – de antemão – de uma obra ousada.
E é exatamente pela espiritualidade que o livro começa; assim, de primeira, admitindo logo o espírito quase beligerante que sempre provoca o trato de uma questão como essa - tabu no meio psi.
Mas o fato incontestável é que a grande experiência do autor na área hospitalar lhe proporcionou importante contato com vivências espirituais, e com a dimensão “transnatural” da realidade de seus pacientes, credenciando-o a trazer o tema para debate, e assumir corajosamente a necessidade de “enveredar pelos caminhos da criticidade teórica para que não nos percamos em meras e vãs digressões teóricas e filosóficas que não encontram sedimentação em nossa realidade contemporânea”.
Segundo Angerami, “a fé no processo de cura é o determinante maior” do sucesso da psicoterapia, e o papel da espiritualidade na prática clínica é possibilitar que “um imenso número de pessoas que (...) simplesmente não acreditam na eficácia da psicoterapia possam dela se beneficiar uma vez que se vinculam à sua fé.”
Para o autor, se também o psicoterapeuta, “não tiver uma fé inquebrantável na capacidade de auto-superação do paciente, de nada adiantará a utilização de técnicas diversas, por mais eficazes que possam ser (...) porque somos espiritualidade tanto quanto somos humanidade. Somos espirituais tanto quanto somos psicoterapeutas”.
O autor, psicoterapeuta e poeta, também faz interessante aliança entre a densidade da ciência psicoterápica e a sensibilidade da arte poética e musical. Densidade e sensibilidade se articulam e se fundem no correr de páginas prenhes de uma narrativa existencialmente analítica que se impõe profunda, séria, mas também suave e esperançosa.
No capítulo “sobre a postura do profissional da saúde diante da doença e do doente”, traz-nos importantes conceituações acerca da relação entre o profissional de saúde e o paciente hospitalar, começando pela postura de indiferença total para a dor do paciente, uma calosidade profissional que o impede de ser tocado pelo sofrimento alheio, a serviço, talvez, da manutenção de uma certa idéia de suposta neutralidade e não-envolvimento: “como se fôssemos capaz diante do sofrimento de acionar algum botão que nos desligasse” de tudo que pudesse abalar nossa estrutura emocional, mas “ao negar a dor do outro, o profissional de saúde não apenas nega a dor do seu semelhante como também a sua própria condição humana.”
Não se quer que o profissional absorva todo o desespero que envolva uma situação de dor. O ideal é: nem calosidade, nem comoção, mas uma postura que permita calor humano sem uma dramática comoção que possa atonar a fragilidade profissional, quando a intenção real é vivenciar sensibilidade e empatia reais. O “distanciamento crítico, segundo Angerami é o comportamento apropriado, porque “faz com que o profissional possa refletir de maneira serena e segura acerca dos desatinos emocionais do paciente.” Angerami advoga a importância de uma “empatia genuína”, fruto da própria condição humana do psicoterapeuta, na mais profunda e exata abrangência que tal definição possa abarcar. E refere-se a Stratton & Hayes para conceituar empatia como “um sentimento de compreensão e unidade emocional com alguém”. Ainda neste capítulo conceitua “profissionalismo afetivo” como “aquela postura onde não ocorre a empatia genuína, mas ainda assim o profissional trata o doente com respeito pela sua dor e sofrimento, adotando uma postura profissional que, embora pareada por certo distanciamento traz um grande respeito pela dor do paciente. Tal procedimento torna-se bastante útil quando se quer evitar um envolvimento emocional que escape do controle do profissional da saúde, “sem que o paciente se sinta desrespeitado na delicadeza do seu sofrimento.”
O capítulo 3, o imaginário e o adoecer – esboço de pequenas grandes dúvidas, propõe de começo uma interessante reflexão: “... não é na patologia que determinou a hospitalização que acharemos a decorrência do sofrimento vivido pelo paciente”, mas provavelmente em “fatores subjetivos que estão determinando a própria conceituação de enfermidade e, por assim dizer, do nível desse sofrimento”.
Para Angerami, tal subjetividade, “circunscrita nos aspectos que envolvem a história de vida de uma determinada pessoa fazem com que determinados diagnósticos repercutam de maneira específica a partir dessas peculiaridades”, e exemplifica a partir de Romano: “a reação depressiva pode alterar o curso clínico de uma doença e se tornar um forte empecilho para bons resultados no processo de reabilitação, tornando-o moroso ou difícil.”
Isto sinaliza para a confirmação de que “o espectro que o imaginário concebe como inerente a algumas patologias é a própria maneira de configuração até mesmo do sofrimento específico de cada paciente”, com diferentes características para uma mesma ocorrência, porque “o imaginário determina a própria maneira como algumas patologias, ao se manifestarem, agem até mesmo em níveis organísmicos.”
Ainda neste terceiro capítulo, Angerami alude ao significado da dor segundo Szasz, que se para o médico “é um problema de doença ou ferimento que aciona os impulsos nervosos, e para o paciente é um problema de desconforto e sofrimento que provém de uma disfunção do seu corpo, para o teólogo é principalmente um problema de culpa e castigo”.E aqui o autor inclui observações de Sartre acerca dos diferentes objetos alvos das análises dos três personagens citados: “cada uma dessas pessoas, na verdade, volta-se para um objeto diferente: o médico para o corpo do paciente como engrenagem biológica, o paciente para o seu próprio corpo como um bem pessoal, e o teólogo para as experiências do indivíduo como agente moral em relação a Deus.”
Angerami observa que ainda que a dor se enfeixe no imaginário do paciente ela não deixa de ser real e inclusive detectável aos instrumentos hospitalares:
“Negar a dor do outro é negar a sua própria realidade”.
O trabalho dos profissionais de saúde na unidade hospitalar, portanto, é direcionado não há uma ou outra dor, não a uma ou outra patologia, mas à pessoa humana que ali está em busca de acolhimento não apenas para a angústia de uma sensação dolorosa e visível ao exame, mas também para uma condição existencial que carece de acolhimento e compreensão.
Antes não era assim. O hospital era lugar de tratar do que “comprovadamente” dói e isto descartava a nova visão holística que aos poucos se impõe e cresce em torno do conceito de função hospitalar. Camon, a propósito, recorre a Foucault para nos lembrar que a própria mudança ocorrida no hospital nas últimas décadas contrasta com o histórico de sua trajetória, pois antes do século XVIII o hospital não era uma instituição médica, mas sim uma instituição de assistência aos pobres e o lugar onde estes iam para morrer. Não havia doente a ser curado, mas apenas alguns pobres morrendo.
Até hoje, coloca Angerami, estamos discutindo os objetivos da instituição hospitalar. E junto com esses objetivos, também a adoção de uma psicologia decididamente humana. “Uma psicologia construída por pensadores humanos e que seja destinada à compreensão do homem pelo homem e não mais por devaneios que coloquem o humano a um plano secundário.”
O capítulo 4 de certa forma prossegue a discussão do capitulo anterior mostrando que “não há como desassociar o imaginário da fé perceptiva, pois praticamente um é resultante do outro e, de alguma forma, um se configura a partir do outro. A própria definição e configuração do que seja imaginário dependem da nossa fé em sua existência e abrangência.”
Se assentimos que há uma interlocução entre imaginário e real a ponto de se tornarem indiscerníveis porquanto formam unidade holística e organísmica; certamente assentiremos que o veículo que nos transporta à admissão da “realidade do imaginário” é a fé, porque “ as coisas que a nossa percepção apreende da realidade são definidas a partir daquilo que acreditamos e que conceituamos como tal.”
É um capítulo que trata do fenômeno da fé: a construção da subjetividade, e calca toda a discussão a partir das percepções visual e auditiva, acrescentando-lhes a “fé perceptiva”: “vivemos numa realidade existencial, onde agimos como se tivéssemos apenas as percepções visual e auditiva” pelas quais nos orientamos em nossas apreensões acerca do que seja o mundo. O autor diz que se podemos afirmar com Merleau-Ponty “que o mundo é o que vemos”, contudo precisamos aprender a vê-lo, e a fé perceptiva nos dá parâmetros de configuração daquilo que sentimos e percebemos não apenas sobre a nossa realidade existencial, como também a respeito do mundo que nossa percepção define como tal. Praticamente tudo é determinado pela apreensão que o nosso olhar tem da realidade.
“Nossa subjetividade é o modo como estabelecemos nossa vivência de transcendência e como nos definimos como seres pensantes e até mesmo humanos. É no enfeixamento da nossa realidade senso-perceptiva que se forma a nossa subjetividade em tudo aquilo que nos caracteriza como humanos, um ser que transcende a si mesmo e se percebe como fenômeno”.
No último capítulo, “Depressão como processo vital”, Angerami estuda a depressão como “manifestação existencial de defesa de uma pessoa frente às vicissitudes da existência. Um fenômeno humano que se faz presente nas mais diferentes situações e contextos”. Camon coloca logo a sua intenção de refletir sobre os determinantes que levam uma pessoa a efetivar a escolha da depressão para a resolução de seus conflitos existenciais, ”independente das pesquisas que reduziram a existência humana a conceitos meramente orgânicos.”
Inicialmente o autor conceitua a depressão a partir de três tipos de ocorrências específicas: a melancolia, a nostalgia e o luto.
A melancolia é conceituada como “a situação em que a pessoa sofre por aquilo que não viveu”, das escolhas que não fez, das oportunidades que desperdiçou.
“A nostalgia, contrariamente à melancolia, é a dor pelas recordações das situações vividas: a saudade que nos traz ao imaginário situações prazerosas vividas no passado, visando dar sentido ao presente ou atenuando o momento cáustico que o presente possa estar configurando.”
“A depressão que envolve situações de perdas e luto são aquelas que mais facilmente encontram escora nas conceituações contemporâneas. É comumente definida como sendo depressão reativa, ou seja, que reage a determinadas situações ocasionais e esporádicas”. Um quadro depressivo diante de uma situação de luto, por exemplo, é algo inclusive bastante saudável, na medida em que mostra uma reação organísmica” que visa a reobtenção de equilíbrio e bem-estar
Camon conclui o capítulo dizendo que a depressão é algo que revela de modo único a nossa condição humana, a qual traz em seu bojo situações de perda e de luto, de frustrações e de desatinos. E se a depressão permite tantos questionamentos e polêmicas, devemos então aceitá-la como algo decididamente único e pessoal.
Concluímos que “Temas Existenciais em Psicoterapia”, de Valdemar Augusto Angerami – Camon, é um livro que tem merecido lugar de destaque entre as melhores obras psicológicas, por sua pertinência, clareza e ousadia.

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