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quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Introdução à Análise Existencial

ANÁLISE EXISTENCIAL
(Walmir Monteiro)  
                                          A Análise Existencial tem como principal matriz a Fenomenologia, que sustentando um olhar diferente sobre o homem, contempla-o como um ser em movimento, capacitado à autotransformação. A partir do pensamento de fenomenólogos e existencialistas foram apontados limites da ciência para a compreensão do ser do homem, surgindo a Análise Existencial que visa a possibilidade de uma psicologia que não se sustente unicamente sobre paradigmas das ciências naturais já que os fundamentos da ciência normalmente se referem ao modo de pensar técnico que objetiva exercer domínio e controle sobre a natureza.
                                         A Análise Existencial é uma intervenção clínica que não busca apenas o ajustamento a ideais de normalidade, mas aceita como normais a ambivalência e o paradoxo, tornando-se uma (r)evolução dentro da psicologia, esse desdobramento da fenomenologia que trouxe à ciência e ao conhecimento humano uma nova forma de olhar as artes, a ciência, a literatura e também de compreender o comportamento humano.
Assim, instituições culturais e científicas, entre elas a universidade, cumprem seu importante papel de desenvolvimento e evolução, sabendo que a primordial idéia de universidade é possibilitar a unidade do diverso, permitindo que o maior número possível de saberes se agasalhe sob a mesma asa.
                                           Assim, um curso de psicologia eficiente deve ter uma matriz curricular tão variada que possibilite uma multiplicidade de visões para o enriquecimento da formação e o progresso da profissão. Entretanto, há quase meio século um dos maiores problemas do ensino da psicologia no Brasil é sua subordinação hegemônica à psicanálise, não que ela não seja importante, mas essa viciosa concentração em uma única forma de conhecimento, definitivamente empobreceu a psicologia brasileira.
                                           Mas há de se comemorar o fato de que recentemente se tem registrado alguma libertação deste saber que imperava soberano como única e última verdade acerca da análise do homem. Libertação, aliás, que ocorre já algum tempo em diversos países do mundo, mantendo apenas – e curiosamente - em três países, uma heróica resistência
[1].
O problema é que estudávamos cinco anos de psicologia vendo psicanálise o tempo todo, e saíamos completamente ignorantes em relação às demais escolas psicológicas, e este era o preço de se ter instalado na área psi, um domínio hegemônico cujos tentáculos se estendiam aos campus universitários fechando toda e qualquer possibilidade de se pensar psicologia fora das matrizes psicanalíticas.
                                           Essa espécie de oligarquia atuava de diversos modos e em diversos campos, inclusive no campo da própria formação psicanalítica que sempre foi uma questão mais política e idiossincrásica (com o nome de análise didática) do que de competência, isenção e formação intelectual. A psicanalista Helena Besserman Vianna relata em artigo o seu dramático combate para ser aceita como membro na SPRJ; sem falar nos altos custos e na elitização de um tratamento que se colocava a milhas de distância de qualquer possibilitação social, ajudando cada vez mais a fortalecer na psicanálise o seu rótulo de elitismo e burguesismo. E não se tratava apenas de rótulo, pois seu conteúdo e prática confirmavam tal nominação.
                                          Muito do destronamento dos barões da psicanálise e da máfia das suas Sociedades Brasileiras se deveu a denúncias que de modo farto vieram a público em 1980, por parte de dois dos mais conhecidos psicanalistas brasileiros de então: Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, que entre outros escândalos trouxeram à tona a existência do psicanalista e psiquiatra Amílcar Lobo atuando no quartel da Polícia do Exército, no DOI-CODI, um dos mais terríveis centros de repressão na época, como torturador de estudantes, artistas e intelectuais contrários à ditadura militar que imperava no Brasil.
                                          Após esta crise dos anos 80, surgiu uma segunda crise na psicanálise, nos anos 90, quando a IPA (Associação Internacional de Psicanálise) fundada pelo próprio Freud, interferiu questionando a presença de Leão Cabernite na presidência da SPRJ, questionamento que na verdade era desdobramento do primeiro escândalo protagonizado por Amílcar. Mas não estamos aqui para discutir os psicanalistas torturadores, pois um outro tipo de tortura está em questão: a submissão da psicologia ao monopólio e ditames psicanalíticos.
Sempre foi um sério empobrecimento para a psicologia essa fidelidade canina à psicanálise, mas as coisas foram mudando, primeiro lá fora, depois aqui, embora ainda haja muito a caminhar no alcance da liberdade para a pluralidade do saber psicológico.
                                           Consta que essa hegemonia praticamente acabou no mundo todo, exceto na França, Argentina e Brasil. Nos EUA pode-se dizer que a psicanálise quase desapareceu, e é importante que os estudantes brasileiros sejam informados disso, porque absoluta no Brasil do jeito que a psicanálise se habituou a ser, dá a impressão de que é assim no mundo todo. E não é.
Catherine Meyer
[2] faz uma constatação dupla em seu livro: a primeira é que a psicanálise na França é hegemônica. Como no Brasil, nos meios de comunicação franceses, se alguém da área psi é convidado a um programa, será invariavelmente um psicanalista. Nas universidades, de 21 faculdades de psicologia, 11 ensinam somente a psicanálise como sistema de tratamento psicológico.
                                          A segunda constatação da autora é que em outros países da Europa, como a Holanda e a Inglaterra, e também nos EUA, a psicanálise tem menos importância que outras abordagens, e se ainda não desapareceu por completo, se tornou uma terapia como outra qualquer.
Segundo Eustáchio Portela Nunes
[3], a força da psicanálise na Argentina e no Brasil se deu com o advento de psicanalistas europeus que fugindo dos horrores nazistas pós segunda guerra, se instalaram na Argentina onde iniciaram a psicanálise, estendendo-se logo após para o Brasil.
Este mesmo autor reconhece que a melhor psiquiatria vigente no Rio de Janeiro no início da década de 50, era de influência fenomenológica baseada na Psicopatologia de Karl Jaspers com sua variante analítico-existencial, inspirada na filosofia de Heidegger. E prossegue dizendo que “embora sendo de grande valor para a compreensão dos enfermos, faltava-lhe uma teoria e uma prática que pudesse orientar a psicoterapia de que precisavam todos os pacientes”, e que a psicanálise deu contribuição importante neste sentido, contudo a análise existencial também evoluiu e hoje, após tantos escritos, pesquisas e práticas desenvolvidos por excelentes Institutos e Universidades, temos uma psicologia fenomenologico-existencial que se basta em relação aos objetivos de uma análise ou tratamento que se volta ao seu objeto de estudo.
                                          Não se pode, portanto estabelecer uma História Universal da Psicologia como se ela acontecesse de modo uniforme em todas as regiões e países. O que surge de forma precursora em um país poderá aparecer (ou não) em outro muito mais tarde. E acabamos compreendendo que toda forma de saber na área psi, toda pesquisa, toda prática profissional e intelectual, toda experiência, contribui de algum modo para o progresso da psicologia, e neste sentido vemos o quanto é importante a unidade na diversidade.
                                           Enfim, o que se critica não é a psicanálise como saber – um saber a mais, entre tantos - mas a obsessiva apropriação da mesma como verdade absoluta e inatacável. E também se critica a falta de visão das universidades e cursos de psicologia que se vendem a um modo único de conhecimento, em detrimento a pesquisas em outras áreas. O que se quer é a pluralidade de conhecimentos e a nivelação dos saberes num mesmo patamar de importância, permitindo o enriquecimento da formação do psicólogo e um melhor desenvolvimento da psicologia.
Aqui apresentamos a Análise Existencial, que reconhece a Psicanálise como importantíssimo saber na Psicologia. Importante, mas não único. E neste trabalho fazemos comparações entre teorias de Freud e de Sartre para elucidar o que é a Análise Existencial e esclarecer porque ela surgiu como proposta nova e remodeladora do nosso pensar e fazer psicologia.
                                            Uma outra questão é a insistência dos psicanalistas em definir a psicanálise como um saber autônomo e divorciado do conjunto de saberes sistemáticos que constituem todo o conhecimento psíquico humano, como se a psicanálise evitasse (e evita) uma leitura e prática interdisciplinar da realidade humana. É por isso que apesar de pretenderem o monopólio do saber psicológico não se reconhecem como psicologia, ainda que Freud não tenha pensado assim. Vejamos o que Rafaelli diz sobre o assunto em seu artigo “Vínculos entre Psicanálise e Fenomenologia”
[4]:
                                              Vale dizer que Freud nunca supôs a psicanálise como uma disciplina separada da psicologia: "a psicanálise é uma parte da psicologia" (Freud 1987[1927], p.286). Inclusive chega a sustentar que a "primeira ponte ligando a psicologia experimental à psicanálise" tenha sido levantada pelo trabalho de Wundt sobre as associações (Freud 1987[1914a],p.39).
É fato que há uma grande diferença entre o que Freud disse e o que os psicanalistas dizem. Mas a realidade da formação do psicólogo tem sofrido importantes alterações quando hoje podemos estudar os dissidentes do pensamento freudiano e descobrir o quanto de fenomenologico-existencial consta no pensamento de Jung, Adler, Dolto e outros dissidentes da psicanálise clássica. Sendo assim, como poderíamos deixar de estudar este e outros autores? Como poderíamos deixar de considerar a fenomenologia e o existencialismo como fundamentais à psicologia sem desprezar a própria história evolutiva do pensamento psicológico?
                                           Sartre foi roteirista do mais importante registro cinematobiográfico de Sigmund Freud. Freud, Além da Alma - Roteiro para um Filme, de título original Le Scénario Freud, mostra que o mais importante autor do existencialismo não estava nada distante das idéias freudianas e foi capaz de roteirizá-las e depois discuti-las profundamente, criando o que chamou de psicanálise existencial. A oposição de Sartre à psicanálise freudiana influiu grandemente na psiquiatria do seu tempo. Ronald Laing, conhecido psiquiatra inglês, buscou um novo método de tratamento da loucura seguindo a filosofia existencialista que rejeitava enfaticamente a idéia de causas inconscientes dos fatos psíquicos, já que para o existencialismo tudo o que está na mente é consciente. Sartre rompeu com a psicanálise por esta retirar a responsabilidade do indivíduo ao conceber a ação de um determinante inconsciente que para Sartre não existe, já que a consciência é necessariamente transparente para si mesma e todos os aspectos de nossas vidas mentais são intencionais, por nós mesmos escolhidos e de nossa inteira responsabilidade. Pensamentos estes que são incompatíveis com o totalizante determinismo psíquico postulado por Freud.
                                           A Análise Existencial vai dizer que somos responsáveis por nossas emoções porque existem maneiras diversas de reagirmos frente ao mundo e à história. Somos inclusive responsáveis pelos traços duradouros da nossa personalidade e assim não podemos dizer “sou assim” como se isto fosse um fato não passível de mudança, porque este “sou assim” nada mais é que uma forma de agirmos diante da realidade, inclusive diante da nossa própria, e é certo que sempre podemos escolher agir diferente, se quisermos realmente.
São os nossos atos que nos definem. Nós mesmos desenhamos nosso próprio retrato e não há nada além desse retrato. Nossas ilusões e imaginações a nosso próprio respeito e sobre o que poderíamos ter sido são decepções auto-infligidas acerca do que não quisemos fazer dentro das nossas possibilidades, que não são poucas.
                                          Permanentemente estamos nos fazendo e nos tornando o que somos. Cada ato contribui para a nossa autodefinição, e nem mesmo assim estamos amarrados ao que fizemos de nós, pois em qualquer momento podemos começar a agir diferente e refazer o caminho da nossa autoconstrução. Temos, sim, o poder de nos transformar indefinidamente, e o instrumento proposto por Sartre para isto é a Análise Existencial, que pode nos proporcionar, além do autoconhecimento, instrumentos de fortalecimento existencial que nos possibilitem coragem e obstinação suficientes à transformação desejada.
                                         A Análise Existencial fornece uma abordagem analítica fundamentalmente humana, capaz de dar conta das necessidades do homem, fugindo dos parâmetros da metapsicologia freudiana que é historicista-determinista nos colocando como vítimas do passado, vítimas daquilo que os outros fizeram (ou tentaram fazer) de nós, recusando o fato de que somos responsáveis por aquilo que nos tornamos, pois "ainda que fôssemos surdos e mudos como uma pedra, nossa própria passividade seria uma forma de ação". (SARTRE)


Contato com o autor:
monteiro.walmir@gmail.com


[1] França, Argentina e Brasil
[2] O livro negro da psicanálise. ("Le Livre Noir de la Psychanalyse", ed. Les Arènes. Organizado por Catherine Meyer com textos de 40 autores.
[3] Psicanalítica – A revista da SPRJ, v. VI, n. 1
[4] Rafaeeli, Rafael. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. N 28, setembro de 2002.